sábado, 6 de julho de 2013

Lembranças de uma professora

Conto
por Austri Junior


Papai era um homem de poucas palavras, discreto, tímido e também de poucas letras. Ele estudara somente até a antiga quarta séria do primário, mas sabia fazer contas como ninguém. Com o pouco estudo que tinha, ensinara-nos as quatro operações básicas da matemática, mesmo antes da hora. Dizia sempre: "Quem sabe fazer contas nunca será passado para traz". Quando a Dona Célia, a nossa professora, adentrava às operações aritméticas mais avançadas tais como a divisão e a multiplicação de dois, três e até mesmo de quatro números bem como a prova dos noves e a prova real, eu e os meus irmãos já sabíamos muito antes... Amávamos ir ao quadro negro fazer os cálculos, sabíamos também fazer o MMC, e a Dona Célia sempre nos pedía para ajudar os outros alunos. Foi daí que nasceu a minha vocação para  professora, e creio que foi por causa do amor que o nosso pai tinha pela matemática, que ao nos transmiti-lo, ajudou-nos na escolha das nossas profissões: os meus dois irmãos, hoje são engenheiros, Paulinho, o caçula,  cursou engenharia elétrica, e o marcos, o mais velho, formou-se em engenharia civil.

Papai tinha muito orgulho de nós, pois gostávamos de estudar e sempre tínhamos um livro nas mãos, e creio que o hábito da leitura em nossa casa também era fruto da influência dele, que além de ser um leitor assíduo - o exemplo fala mais alto que as palavras - também nos contava lindas histórias na hora de dormir. O meu pai era um exímio contador de histórias. Lembro-me de que ele nos tomava pelas mão - o Paulinho e eu - logo pela manhã, e nos levava para a escola, o Marcos ia caminhando ao nosso  lado, e papai seguia conversando conosco durante todo o trajeto para o grupo escolar... Papai sempre aproveitava as situações que se apresentavam à nossa frente para no ensinar algo. Ele estava sempre atento ao mínimos acontecimentos e socializava conosco, coisas simples, como um verdadeiro mestre. Ele era um  homem de muita sabedoria. Lembro-me de uma vez, quando tinha apenas nove anos, e era uma garotinha, estávamos chegando próximo da escola, e havia um homem bêbado e muito bravo, querendo agredir a esposa, papai com toda a mansidão que Deus lhe dera, pediu-nos que esperassem-no afastados, deu ordem ao Marcos - que na época esta com doze anos - que tomasse conta de nós, e então aproximando-se daquele senhor, começou a conversar com ele - de onde estávamos não conseguíamos ouvir o teor da conversa - e em menos de dez minutos, o homem estava abraçado à sua esposa e chorando muito. Papai então, voltou para nós e ajoelhando-se disse para os meu irmão: "Meninos, fiquem sempre longe da bebida, e nunca agridam pessoa alguma, principalmente  uma mulher". Voltando-se para mim, disse: "Filha nunca deixe que homem nenhum lhe agrida, ou grite com você. Dê-se sempre ao respeito, nunca abaixe a cabeça, nunca agrida a ninguém e não deixe que lhe agridam. Ninguém tem o direito de comandar os outros. O que fazem conosco, é porque assim permitimos. Minha filha, não namore e nem se case com homem de vício, nem com homem mentiroso e violento." E olhando para nós três, disse-nos: "Se plantarmos arroz, não colheremos feijão. Quem semeia vento, colhe tempestade." Apesar da tenra idade entendemos perfeitamente a mensagem que papai acabara de nos transmitir. Foi uma mensagem clara e em baixo tom. Papai falava baixo e mansamente.  Nunca ouvira ele levantar a voz para ninguém, nem para o nosso cachorro, o totó...

Mamãe era diferente do nosso pai. Tudo o que ele era, ela era o contrário, mas tinha um coração maravilhoso e era também uma mulher de muita sabedoria e era amada por todos da nossa família e por toda a vizinhança. Mamãe era agitada e falava alto, mas apesar disso eles viviam em perfeita sintonia. Nunca enredemos isso... Sabemos que os oposto se atraem, mas essa regra funciona bem com a eletricidade. Nos relacionamentos humanos o óleo não se mistura com a água, e forma uma mistura heterogênea, mas no caso da mamãe e do papai, a natureza abriu uma grande exceção, e eles viveram casados  e em harmonia por longos cinquenta e seis anos até o último suspiro daquele velo sábio, que sabia como cativar e cuidar das pessoas. Quatro meses depois da morte do papai, mamãe também partiu. Ela não apresentava nenhum problema de saúde, mas após a partida do nosso pai, ela perdeu o gosto pela vida, ficou deprimida e em uma noite deitou-se para dormir, e não acordou mais.

A nossa vida é mesmo assim: nascemos, crescemos, vivemos e partiremos um dia (ou uma noite) qualquer... Enquanto estamos aqui, façamos e demos o melhor de nós. A vida é curta e passa muito rapidamente. O que ficará de nós é o nosso legado. É tão bom que sejamos lembrados pela nossa benevolência, benignidade, bondade, mansidão...Tenho ótimas lembranças dos meus pais, enquanto muitas amigas ainda conservam as mágoas do seus pais mesmo depois de terem partido daqui. Conheço pessoas que ainda carregam no peito grandes dores causadas pelas pessoas que amaram e que lhes parecem não  foram correspondidas. Sempre amei os meus pais e sempre fui amada... Sinto muito falta da mamãe, e o papai era e continua sendo o meu grande herói!